Derrotado nas urnas por Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o presidente Jair Bolsonaro (PL) perderá em 2023 a prerrogativa de foro por função —por força do cargo, toda e qualquer ação envolvendo o chefe do Executivo precisa ter relação com o mandato e tramitar no STF (Supremo Tribunal Federal). Para isso, ele deve ser denunciado pela PGR (Procuradoria-Geral da República). É necessário ainda que a Câmara dos Deputados dê aval a um possível julgamento da Corte.
Com o fim do mandato iniciado em janeiro de 2019 (ele é o primeiro presidente a perder uma tentativa de reeleição), processos em curso que envolvem Bolsonaro podem descer para as instâncias ordinárias, e o atual governante ser julgado pela Justiça comum —o que aumenta as possibilidades de responsabilização penal.
Além disso, novas ações poderão ser movidas por procuradores ou promotores pelo país, a depender da natureza do crime. Uma eventual ordem de prisão não é descartada.
Arquivamento. No entanto, o provável destino da maioria dos processos contra o atual presidente deve ser o arquivamento, a exemplo do que ocorreu com o inquérito sobre possível prevaricação ante denúncias de corrupção na compra de vacinas durante a pandemia da covid-19.
A perda do cargo seria punição natural para muitos dos processos por crime de responsabilidade e que estão em vias de arquivamento no Supremo. Como Lula assumirá o comando do Palácio do Planalto em 1º de janeiro de 2023, a tendência é que as ações não prosperem a partir de então.
Um dos cenários em aberto diz respeito às investigações sob comando do ministro Alexandre de Moraes no âmbito da suposta atuação de milícias digitais contra a democracia.
A decisão sobre o desfecho da apuração, a considerar cenários para o ano que vem (em que Bolsonaro será ex-presidente, sem foro privilegiado), dependerá da decisão do ministro. O capitão reformado do Exército também é investigado no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), do qual Moraes é presidente.
O ministro e chefe do TSE pode determinar a continuidade dos processos no âmbito do Supremo ou consentir com a transferência de instância.
Em 23 de julho, Bolsonaro foi a Vitória (ES) para um evento de campanha com evangélicos. Na ocasião, afirmou que não temia ações na Justiça comum.
“Está na imprensa ameaças à minha pessoa. Se eu perder o mandato, poderei ser preso por até 100 anos pelos ataques à democracia. Eu não dou recado a ninguém. Se querem dar recado a mim, não vai surtir efeito. Vou continuar fazendo a mesma coisa.”
Prorrogação. Em 7 de outubro, Moraes prorrogou por mais 90 dias o chamado inquérito das milícias digitais, que apura a existência de uma organização criminosa digital que atuaria contra a democracia.
A investigação foi instaurada pelo ministro em julho de 2020, para dar continuidade às investigações do antigo inquérito dos atos antidemocráticos —arquivado após a PGR (Procuradoria-geral da República) concluir que não havia indícios de crimes contra detentores de foro privilegiado. Foi no âmbito desse novo inquérito que Moraes mandou prender, em agosto, o ex-deputado Roberto Jefferson.
Em maio desse ano, Moraes determinou que esta apuração deve correr em conjunto com o inquérito que apura os ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral. A junção dos dois casos foi um pedido da PGR, que apontou a necessidade da unificação para decidir se apresenta ou não uma denúncia a respeito.
Ex-ministro envolvido em escândalo do MEC. Um dos processos envolvendo Bolsonaro que pode ser remetido a instâncias inferiores no ano que vem é o que apura eventual interferência do presidente na investigação contra o ex-ministro da Educação Milton Ribeiro.
Ribeiro foi preso em junho desse ano por causa de indícios de irregularidades na distribuição de verbas do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação). Em interceptação telefônica de uma conversa com a filha, o ex-ministro afirmou que Bolsonaro havia tido um “pressentimento” de que a PF realizaria operação de busca e apreensão.
Sigilo de cem anos. Assim que deixar a função de presidente da República, Bolsonaro também terá que lidar com o fim do sigilo de cem anos imposto a vários decretos presidenciais editados durante o mandato. Essa foi uma promessa de campanha de Luiz Inácio Lula da Silva.
Em entrevista a uma rádio no interior de São Paulo, em junho deste ano, o petista afirmou:
É uma coisa que nós vamos ter que fazer: um decreto, um revogaço desse sigilo que o Bolsonaro está criando para defender os seus amigos
Na Constituição, a possibilidade aventada por Lula está no parágrafo 4º do artigo 84 que diz que, entre as competências do presidente da República, está a de “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”.
Ou seja, Lula, eleito chefe do Executivo, pode modificar o artigo 31 da própria Lei de Acesso à Informação que fala sobre o sigilo de 100 anos. Neste caso, seria preciso apresentar um projeto de lei —que precisaria passar pelo Congresso Nacional— ou baixar uma medida provisória. Outro caminho seria alterar o decreto 7.724, que regulamenta a LAI, por meio de outro decreto.
Entre os assuntos que Bolsonaro impôs sigilo de cem anos estão o seu próprio cartão de vacinação (ele se negou a receber o imunizante contra a covid-19), o acesso dos filhos ao Palácio do Planalto e documentos da vacina Covaxin, entre outros.